Saúde Única

Biosseguridade, animais selvagens e saúde humana: lições após a pandemia de COVID-19 

O coronavírus SARS-CoV-2 (COVID-19) é o agente etiológico de uma doença infecciosa emergente (EID) que causou a pior catástrofe de saúde pública do século XXI até hoje. Em termos de impacto, a pandemia de COVID-19 perde apenas para a pandemia de gripe espanhola de 1918 na história do mundo moderno. Tanto a gripe espanhola de 1918 quanto a COVID-19 representam exemplos de EID fatais, definidas como doenças causadas por uma espécie recém-descoberta ou um novo microrganismo patogênico.1  

A pandemia de COVID-19 demonstrou mais uma vez a importância da interface animal-ser humano-meio ambiente no surgimento de doenças infecciosas. Embora nem todas as zoonoses causem pandemias, a maioria delas é de origem zoonótica. Por isso, o conhecimento dos fatores associados deve constituir a base das estratégias de prevenção.2  

FATORES ASSOCIADOS À EMERGÊNCIA DE ZOONOSES 

Entre os fatores associados à emergência zoonótica se destacam a interação humana com os ecossistemas, a perda de biodiversidade, as mudanças no uso da terra, as mudanças climáticas, a caça ilegal, a criação de animais selvagens,o comércio e o consumo da fauna silvestre. Tudo isso tem contribuído para fomentar interações diretas entre o homem, os animais domésticos e selvagens. Esses fatores promovem a disseminação de patógenos e o desenvolvimento de doenças infecciosas emergentes derivadas da fauna selvagem.2  

ETIOLOGIA 

No geral, 60 % das doenças infecciosas emergentes globais são de origem zoonótica e 70 % se originam na vida silvestre.1,3,4  

Roedores silvestres, primatas e pássaros silvestres são fontes importantes de patógenos causadores de EID. Esses animais portam vírus que se adaptaram para coexistir dentro de seus hospedeiros e têm pouca ou nenhuma patogenicidade, mas podem se espalhar para humanos ou animais domésticos e se tornar altamente patogênicos para humanos.1 Na etiologia das doenças infecciosas emergentes, deve-se notar que a maioria (94 %) dos vírus zoonóticos capazes de transmissão inter-humana e disseminação global são vírus RNA.2  

Morbidade e mortalidade 

Nos últimos 20 anos, as doenças infecciosas emergentes representaram sérias ameaças à saúde humana e ao desenvolvimento econômico mundial, tal como aconteceu com a pandemia de COVID-19.  

Em geral, as 56 principais zoonoses causam 2,5 bilhões de casos e 2,7 milhões de mortes anualmente, sendo um dos principais obstáculos no combate à pobreza que atinge 1 bilhão de agricultores. Pandemias e outras zoonoses emergentes causam gastos que chegam a 1 trilhão de dólares por ano, enquanto os gastos com estratégias globais de prevenção são estimados entre 22 e 31 bilhões por ano.8  

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ESTRATÉGIAS DE CONTROLE E PREVENÇÃO:  SAÚDE E BIOSSEGURIDADE ÚNICAS 

Dado o potencial de causar alta morbidade e mortalidade além de sua rápida disseminação, as doenças infecciosas nem sempre podem ser controladas por meio de estratégias tradicionais enquanto se aguarda o desenvolvimento de novas abordagens. O desenvolvimento de medicamentos e vacinas é um processo complexo, lento e dispendioso. Por isso, é essencial focar no desenvolvimento e aplicação de estratégias para evitar o aparecimento dessas doenças infecciosas e permitir o alerta precoce de seus surtos para melhorar a prevenção e o controle. Sua prevenção não pode ser alcançada atuando em apenas uma frente; é necessária uma cooperação intersetorial, inter-regional e interdisciplinar. Essa visão é conhecida como a estratégiaSaúde Única”,um conceito que aborda as zoonoses na interface homem-animal.1  

A pandemia de COVID-19 confirmou ainda mais a importância das estratégias “Saúde Única” para a gestão e controle de doenças infecciosas emergentes. 

A abordagemSaúde Única”mobiliza vários setores, disciplinas e comunidades em diferentes níveis da sociedade para trabalhar em conjunto, promover o bem-estar e enfrentar as ameaças à saúde e aos ecossistemas. Da mesma forma, esta abordagem trata da necessidade coletiva de água, energia e ar limpos, alimentos seguros e nutritivos, agindo sobre a mudança climática e contribuindo para o desenvolvimento sustentável.9

Biosseguridade Única 

Após a pandemia de SARS-CoV-2, grande parte do mundo percebeu a importância da biosseguridade na proteção da saúde global. Em particular, tornou-se evidente a necessidade de uma gestão mais eficaz dos riscos de introdução de organismos indesejados nas fronteiras internacionais.10  

Isso levou vários países a revisar seus sistemas nacionais de biosseguridade para aproveitar as lições aprendidas com a pandemia. O resultado mostra a necessidade de implementar estratégias de biosseguridade mais sólidas e muito mais amplas do que a maioria dos formuladores de políticas estão considerando atualmente e vão muito além das ações tomadas em resposta ao SARS-CoV-2.10  

Embora seja verdade que a biosseguridade às vezes é usada como sinônimo de biodefesa ou bioproteção, esse termo geralmente se refere à pesquisa, procedimentos e políticas que cobrem a exclusão, erradicação ou gerenciamento eficaz dos riscos apresentados pela introdução de pragas invasoras de plantas, pragas e doenças animais passíveis de transmissão ao homem (zoonoses), a liberação de organismos geneticamente modificados e seus produtos e a gestão de espécies invasoras e genótipos.10  

Para que as políticas de biosseguridade sejam efetivas, deve-se oferecer uma abordagem universal mais coerente que busque sinergias entre os setores de saúde, agricultura e meio ambiente em nível nacional e internacional. O objetivo deve se concentrar em mudar a abordagem tradicional de regulamentar órgãos e setores individuais para garantir a confiança no quadro geral de gerenciamento de riscos. Várias iniciativas recentes, como a “Saúde Única”, reconheceram o progresso em direção a uma abordagem mais holística da biosseguridade.10   

Infelizmente, a iniciativa “Saúde Única” ainda não aborda explicitamente os principais problemas de biosseguridade, especificamente a proliferação global de pragas invasoras, ervas daninhas e patógenos que estão inextricavelmente entrelaçados e são ameaças significativas ao bem-estar humano, bem como à saúde pública e ao meio ambiente. Uma alternativa que fornece uma perspectiva integrada é a abordagem “Biosseguridade Única” que aborda os muitos riscos de biosseguridade que transcendem as fronteiras tradicionais de saúde, agricultura e meio ambiente, incluindo parasitas zoonóticos, vetores de patógenos, pragas da agricultura ou silvicultura e ameaças à biodiversidade.10,11  

No centro da resposta de saúde pública internacional à COVID-19 está a necessidade de enfrentar a ameaça de uma pandemia. Apesar do fato de que muitas espécies invasoras se estabeleceram em vários continentes a ponto de efetivamente se tornarem ameaças pandêmicas, as intervenções de biosseguridade para prevenir invasões biológicas raramente enfocam o risco de proliferação global. Portanto, em vez do paradigma atual de prevenir a entrada de espécies invasoras por meio de inspeções fronteiriças e quarentenas, a prevenção da exportação deliberada ou acidental de ameaças emergentes com potencial para invasões pandêmicas pode ser uma abordagem mais eficaz.11 

Com base em experiências internacionais de saúde pública ao lidar com as recentes pandemias de doenças infecciosas, três iniciativas inter-relacionadas parecem essenciais para enfrentar os riscos pandêmicos de invasões biológicas:11  

  1. Uma abordagem aprimorada para avaliação de riscos que olhe além das fronteiras nacionais e considere o risco global de uma espécie invasora e identifique quando esta poderá se tornar um risco de biosseguridade de abrangência internacional. 
  1. Um instrumento regulatório específico, inspirado no Regulamento Sanitário Internacional, para impor vigilância proativa e resposta às ameaças de biosseguridade em todo o mundo. 
  1. O estabelecimento de uma convenção multilateral responsável pela governança internacional da biosseguridade.  

Referências 

1. Wu Q, Li Q, Lu J. A One Health strategy for emerging infectious diseases based on the COVID-19 outbreak. J Biosaf Biosecurity. 2022;4(1):5-11. doi:10.1016/j.jobb.2021.09.003 

2. Sánchez A, Contreras A, Corrales JC, Fe D. En el principio fue la zoonosis: One Health para combatir esta y futuras pandemias. Informe SESPAS 2022. Gac Sanit. 2022;36(S1):S61-S67. 

3. Jones KE, Patel NG, Levy MA, et al. Global trends in emerging infectious diseases. Nature. 2008;451(7181):990-993. doi:10.1038/nature06536 

4. OIE World Organization for Animal Health. Wildlife Health Framework (WTF) HEALTH FRAMEWORK. ’Protecting Wildlife Health To Achieve One Health’. 2021;33:1-17. 

5. Karesh WB, Dobson A, Lloyd-Smith JO, et al. Ecology of zoonoses: Natural and unnatural histories. Lancet. 2012;380(9857):1936-1945. doi:10.1016/S0140-6736(12)61678-X 

6. Randolph DG et al. Prevenir Próximas Pandemias. Zoonosis: Cómo Romper La Cadena de Transmisión. (( MK y PS, ed.).; 2020. https://reliefweb.int/report/world/prevenir-la-pr-xima-pandemia-zoonosis-y-c-mo-romper-la-cadena-de-transmisi-n 

7. Wegner GI, Murray KA, Springmann M, et al. Averting wildlife-borne infectious disease epidemics requires a focus on socio-ecological drivers and a redesign of the global food system. eClinicalMedicine. 2022;47:101386. doi:10.1016/j.eclinm.2022.101386 

8. Daszak, P., Amuasi, J., das Neves, C. G., Hayman, D., Kuiken, T., Roche, B., Zambrana-Torrelio, C., Buss, P., Dundarova, H., Feferholtz, Y., Földvári, G., Igbinosa, E., Junglen, S., Liu, Q., Suzan, G., Uhart, M., Wannous, C., Woolaston, K., Mosig Reidl, P HT. Workshop Report on Biodiversity and Pandemics of the Intergovernmental Platform on Biodiversity and Ecosystem Services.; 2020. http://agriculture.kzntl.gov.za 

9. FAO, UNEP, WHO  and W. One Health Joint Plan of Action (2022–2026). Working Together for the Health of Humans, Animals, Plants and the Environment. FAO; UNEP; WHO; World Organisation for Animal Health (WOAH) (founded as OIE); 2022. 

10. Hulme PE. One Biosecurity: A unified concept to integrate human, animal, plant, and environmental health. Emerg Top Life Sci. 2020;4:539-549. doi:10.1042/ETLS20200067 

11. Hulme PE. Advancing One Biosecurity to Address the Pandemic Risks of Biological Invasions. Bioscience. 2021;71(7):708-721. doi:10.1093/biosci/biab019 

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